Mobilização em Salvador celebra o Dia Nacional dos Surdos

Quatrocentas pessoas, surdas e ouvintes, se reuniram pacificamente nas ruas do centro da capital baiana em passeata que homenageou as lutas e conquistas da comunidade surda, dentro do movimento Setembro Azul, de âmbito nacional
 

Caminhada foi encerrada na Câmara Municipal, onde os deficientes auditivos, seus amigos e familiares, intérpretes de Libras e professores, vindos da capital e do interior, se sensibilizaram pela causa dos surdos
(Foto: Hugo Gonçalves)
 
Uma rápida apresentação da banda percussiva Batuque de Surdo, integrada por alunos da Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Auditivos do Estado da Bahia (Apada-BA), no Campo Grande, serviu de prelúdio para uma grande passeata em homenagem ao Dia Nacional dos Surdos, nesta sexta-feira (26). Na ocasião comemorativa, quatrocentas pessoas, surdas e ouvintes, seguiram em harmonia pelas ruas do centro antigo de Salvador, se concentrando em uma das famosas praças da cidade em direção à Câmara Municipal.
 
Promovida conjuntamente pela Apada-BA, pela Associação Educacional Sons no Silêncio (Aesos), pelo Centro de Surdos da Bahia (Cesba), pelo Centro de Estudos Culturais e Linguísticos Surdos (Ceclis) e pelo Centro de Capacitação de Profissionais da Educação e de Atendimento às Pessoas com Surdez Wilson Lins (CAS), a mobilização pacífica fez parte do movimento anual denominado Setembro Azul, que conscientiza a comunidade surda brasileira na luta por escolas bilíngues e outras exigências.
 
Em um veemente discurso no minitrio, a psicóloga Márcia Araújo reconheceu que a comunidade surda, por estar excluída das políticas públicas de educação, lazer e outros segmentos, enfrenta uma complexidade de dificuldades no processo comunicacional. "Poucos segmentos sociais têm, no seu corpo de trabalho, intérpretes de Libras (língua brasileira de sinais). Então, as pessoas que estamos vendo aqui na rua são pessoas surdas, pessoas que militam na causa surda, professores surdos e intérpretes de Libras", proferiu.
 
Márcia observou que os surdos, seus amigos e familiares, intérpretes e professores que foram à passeata, não apenas soteropolitanos, mas também vindos de Camaçari, Simões Filho, Lauro de Freitas e Itaberaba, estavam denunciando a invisibilidade pela qual os surdos da capital e do interior baiano estão submissos. "A comunidade surda de Salvador pede o olhar da sociedade, pede a sensibilidade das pessoas, pede o olhar diferenciado para a língua brasileira de sinais", conclamou a psicóloga.
 
"A pessoa surda é obrigada a falar, porque hoje o surdo vai à rua para manifestar o seu desejo, para manifestar a sua cultura. E qual é a cultura do surdo? O mais importante artefato cultural é a língua brasileira de sinais", continuou, mencionando a proibição da ferramenta linguística, determinada no Congresso de Milão, em 1880. A partir daí, segundo Márcia, o surdo vem sofrendo e peregrinando, porque não há nenhum método efetivo de comunicação, no entanto ele tem direito de utilizar a Libras.
 
Passe livre único
 
De acordo com a psicóloga, os deficientes auditivos necessitam urgentemente de intérpretes de Libras nas escolas, inclusão social, direito ao trabalho, acesso à saúde com dignidade, acesso à moradia adaptada para portadores de necessidades especiais, escolas bilíngues e passe livre único no transporte coletivo. "O surdo precisa de passe livre único. Ele tem passe livre municipal, passe livre estadual e federal. Fica peregrinando nas clínicas pedindo laudo. Temos direito de um passe livre único", persuadiu.
 
Márcia Araújo questionou ainda o problema da invisibilidade do surdo ao assistir a programas de televisão, inclusive no horário eleitoral gratuito, ocasionada pela ausência de janelas de intérprete. "Como é que ele vai escolher o presidente do país?", indagou. "Queremos janela de intérprete! Queremos janela de intérprete! Queremos janela de intérprete!", suplicou, ao se dirigir a uma multidão de surdos insatisfeitos na manifestação.
 
Uma das reivindicações da comunidade surda, segundo Márcia, é a presença de intérpretes nas escolas de trânsito, porque a maioria dos surdos, ao se preparar para obter sua primeira habilitação, não possui acesso à emissão do laudo e do atestado médico. "Precisamos mudar a lógica desse sistema, precisamos protestar sim, ir para a rua sim, mostrar que nós estamos vivos. Os surdos estão vivos, eles não têm que ficar escondidos não. Surdo tem direito, surdo é cidadão!", disse.

Milton propõe mudanças sociais

Postulante a uma vaga na Câmara dos Deputados, o presidente e um dos fundadores do Ceclis, professor Milton Bezerra Filho, nasceu surdo e atualmente é uma das pessoas que estão propondo modificações na sociedade. Ele lembrou que o Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines), no Rio de Janeiro, fundado em 26 de setembro de 1857 – daí a origem da data comemorativa da categoria –, era, durante anos, a única escola vocacionada para essa minoria no Brasil.

"Nós, surdos, íamos lá para o Rio de Janeiro; (pois) não tinha educação de surdos na Bahia. A gente ia dormir lá no Rio de Janeiro, estudava lá (no Ines). Depois que teve o corte (demissão de funcionários) dessa escola, é que começaram a criar as associações no Brasil todo. Hoje, nós, surdos, temos escolas e associações no Brasil todo. E esse é um problema. Essa é uma vitória, mas nós temos que enfrentar muitos problemas. Então, nós temos que lutar, porque o surdo tem direito", encorajou-se Milton.

Segundo ele, a inclusão de intérpretes de Libras nas escolas é obrigatória por lei. Primeira pessoa surda a se formar em Pedagogia no estado da Bahia, Milton reiterou que os seus semelhantes têm direito de ir à faculdade. "A gente passa no vestibular, (e logo depois) se matricula. Quando chega na hora da aula, a faculdade diz que não tem intérprete, e que o problema é do surdo. O problema não é do surdo, o problema é da sociedade, o problema é da inclusão social. Chega de preconceito!", sinalizou.

"Somos surdos e somos felizes"

A diretora do CAS Wilson Lins, Maria Sueli Silva, argumentou que a violência aos direitos humanos, por ser de natureza estrutural, torna inviável a acessibilidade à comunidade surda. "Nós somos surdos e somos felizes, mas temos uma luta a conquistar. Nós estamos aqui para que vocês vejam nossa comunidade, reunida em um só coro sinalizado", discursou Sueli no minitrio, enumerando alguns direitos que o surdo tem, como a oferta por trabalho, a obtenção de carteira de motorista e a implantação de escolas bilíngues.

Conforme a diretora da Aesos, Jocineide Campos, o 26 de Setembro é um momento de registrar as lutas e conquistas da categoria e também de reivindicar que a comunidade ouvinte conheça a equivalente surda. "Saiba que existe na cidade de Salvador e em outros lugares uma comunidade que se comunica através das mãos, através da Libras, a língua brasileira de sinais", garantiu.

A educadora esclareceu que o surdo, por ser basicamente imagético, não escuta, mas obtém informações por intermédio de mecanismos visuais. Jocineide reconheceu ainda que alguns deficientes auditivos fazem uso da oralização, que no entanto é opcional. "É um direito que cabe a qualquer pessoa fazer o que acha melhor", apontou. Para a diretora da Aesos, a instituição oferece aos alunos surdos escola bilíngue, capacitação profissional e encaminhamento para o mercado de trabalho.
 
Na análise da coordenadora da Associação Baiana para Cultura e Inclusão (Abaci), Cristina Gonçalves, a Bahia possui 3 milhões de pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, a maioria negros, pobres e mulheres, sendo 750 mil apenas em Salvador. Ela advertiu que, especificamente no Dia dos Surdos, não há nenhuma autoridade política capaz de receber os deficientes de todas as dimensões e dialogar com o professor Milton, considerado o representante máximo dos surdos no estado.

"Onde vocês estão falando nas políticas, falando na televisão em nome das pessoas com deficiência, mas aqui e agora, cadê vocês? Onde vocês estão? Isso é uma vergonha", lamentou Cristina. "Daqui há umas semanas (no dia 5 de outubro), estamos colocando nossos votos na urna. Olha em que você vota. Olha em quem de fato aprovou projetos e quem levanta a bandeira da pessoa com deficiência", convenceu a dirigente da Abaci, que é cega e uma das apoiadoras da candidatura de Milton para deputado federal.

Entidades que batalham

Segundo a presidente da Associação dos Surdos de Lauro de Freitas (ASLF), Nathalie Conceição, a presença da entidade no ato público de sexta-feira foi relevante para demonstrar a identidade surda. "Demonstra que nós somos pessoas que estamos na luta, que nós somos cidadãos. Eu sou fundadora de uma associação de surdos, e eu tenho direito de lutar pelo meu povo. Eu sou líder em Lauro de Freitas, sou da associação, e eu tenho os mesmos direitos que os cidadãos normais", expressou.

Como liderança da comunidade surda, Nathalie reivindica um futuro melhor, com ênfase na educação. "Estar aqui é muito importante, é lutar pelo nosso direito. Nossos direitos não estão sendo respeitados e eu estou aqui também representando a pessoa surda", disse. Momentos antes de comparecer à mobilização na capital, no mesmo dia 26, a presidente da ASLF havia organizado uma caminhada representativa similar em Lauro de Freitas, que, conforme ela, era "mais uma prova da necessidade da luta".

Nathalie explicou ainda que, durante a passeata laurofreitense, a associação entregou um documento à Secretaria da Educação que solicitava a implantação de escolas bilíngues na cidade vizinha. Quanto às lutas dos deficientes auditivos em Salvador, Nathalie observou que elas são idênticas às de Lauro de Freitas. "Nós estamos caminhando com o mesmo objetivo, a cidadania do surdo", esclareceu.

Também presente na manifestação do Setembro Azul, o presidente da Associação Municipal e Metropolitana das Pessoas com Deficiência, o cadeirante Cledson de Oliveira Cruz, reafirmou a importância do Dia Nacional dos Surdos aplicada ao âmbito de Salvador. "(A data) É um dia do município, em que nós temos que ter a presença do município nas nossas vidas", assinalou o militante.

Cledson, sensibilizado há anos com a causa dos portadores de necessidades especiais, aproveitou a oportunidade para denunciar a negligência da prefeitura perante a categoria. "Que políticas o município está traçando para os surdos? Que políticas o município está traçando para as pessoas com deficiência?", reclamou, ao se dirigir a quatrocentas pessoas, majoritariamente surdas, aglomeradas no trecho final da Avenida Sete de Setembro, em frente à Praça Castro Alves.

Desconhecimento gera preconceito

A professora Cíntia Barbosa, que leciona para as turmas de Ensino Fundamental no CAS Wilson Lins, em Ondina, percebe uma existência significativa de preconceitos contra os surdos em razão do desconhecimento. "As pessoas (normais) pensam que as pessoas surdas são incapazes, quando na verdade a diferença só é linguística", elucidou.

Outra docente do CAS, Gisele Adélia Araújo, disse que os papéis desempenhados pelos educadores perante os surdos são assegurar o ensino da língua de sinais em sala de aula e lutar pela educação bilíngue. "Essa é a nossa luta que não deve morrer jamais", afirmou Gisele, que também atua como intérprete de Libras na mesma escola onde ensina. Casada com um surdo, a professora comparece anualmente às manifestações, pedindo uma educação melhor e de qualidade.

Pesquisador com a comunidade surda, o psicólogo Omar Barbosa Azevedo compareceu à passeata para se solidarizar com o movimento dos portadores de deficiência auditiva. Na acepção de Omar, os direitos dos surdos, apesar de serem garantidos por leis específicas, ainda não são respeitados. Como exemplo dessas conquistas, o pesquisador enfatizou a regulamentação, pela Lei nº 1.436, de 24 de abril de 2002, da língua brasileira de sinais (Libras), para utilização na educação, na saúde e em outros âmbitos.

"Mesmo que ela (a Libras) seja regulamentada, isso de fato nem sempre acontece, porque falta o cumprimento dessas leis. Claro que aqui e ali é cumprido, mas ainda é muito pouco, e é por isso que a comunidade está aqui hoje (sexta-feira) fazendo essa passeata para pressionar essas instituições de educação, de saúde, a cumprir essas leis", reivindicou Omar, que também é professor universitário. Ele prosseguiu dizendo que as instituições de ensino, públicas ou privadas, têm que providenciar intérpretes de Libras.

O portuário Luiz Borba Souza marcou presença na passeata devido ao fato de ter uma filha surda, a estudante Larissa Cristine. Para ele, os surdos apresentam muitas bandeiras que precisam ser trabalhadas e muitas dificuldades que precisam ser ultrapassadas. "E é nesse dia (26 de setembro) também que a gente faz esse trabalho de mobilização com a comunidade surda para trazer um alerta para a sociedade, que os surdos precisam ter uma convivência melhor com os ouvintes", proclamou.

De acordo com Luiz, que também preside o Sindicato dos Portuários de Candeias, faz-se necessário à comunidade surda ter menos discriminação e mais atenção, com intérpretes nas salas de aula e instalação de telefones públicos adaptados, além de mobilizar toda a cidade. "Hoje, se você procurar o contrato da telefonia fixa, era para ter 3 mil orelhões na cidade adaptados aos surdos, e nós não temos nem 300 orelhões. As autoridades não fiscalizam os contratos e essa situação", disse.

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