Uma noite caymmiana no Farol

Transcorridos quatro dias do centenário de Dorival Caymmi, Daniela Mercury e seus convidados homenagearam o cantor e compositor baiano, um dos ícones da nossa arte musical, em show acústico para um público apreciador de sua obra
 
Representando a família Caymmi no espetáculo-tributo, Daniela recebeu Danilo (à direita), que herdou ofício de músico do pai
(Foto: Lúcio Távora/Agência A Tarde – 04/05/2014)
 
Foi uma noite tão poética, magnífica e inspiradora quanto o primor das sofisticadas canções lapidadas por um baiano legítimo, que rapidamente pegou um Ita no Norte e veio para o Rio morar, como diz uma de suas famosas músicas, encantando o Brasil e mundo. Um cartão-postal de nossa cidade, entoada em versos e melodias precisos pela intrépida voz do homenageado daquela oportunidade, se converteu em um verdadeiro teatro a céu aberto.
 
Uma multidão sem distinção, congregando todas as idades, cores, origens, nacionalidades, idiomas, credos, opiniões e predileções, encontrou abrigo no Largo do Farol da Barra em um domingo sereno como a brisa do oceano, firmando um pacto, uma convergência, em torno de um tributo singular: os 100 anos de Dorival Caymmi (1914-2008). Mais do que um mito, o centenário foi um insigne cantador das circunstâncias marítimas, populares e românticas.
 
Naquele inesquecível quatro de maio, há exatos quatro dias posteriores da efeméride em que Caymmi, ícone absoluto de nossa música, completaria seu centésimo aniversário se continuasse vivo fisicamente, uma celebérrima admiradora do saudoso e imortal trovador, Daniela Mercury, descartou sua face eletrizante carnavalesca e conduziu, com engenho e arte, um fabuloso megaespetáculo acústico, traduzido numa perfeita aliança entre musicalidade e poesia.
 
E fiel às raízes da cultura que emana do próprio povo, genuíno e criativo. O show democrático, oficialmente denominado Daniela canta Caymmi, era apelidado pela própria anfitriã de “pôr do som especial”, em alusão às apresentações que ela costumava realizar nos crepúsculos do primeiro dia de cada ano, coincidentemente no Farol. Todavia, a compatibilidade do repertório caymmiano com o esplendor noturno reinava sobre o palco armado em frente a uma das sentinelas coloniais de São Salvador, “pedaço de terra que é meu”.
 
Articulada com a performance do conjunto vocal MP7, a eloquência ímpar e magistral da cantora Virgínia Rodrigues, cujo timbre inigualável nos faz lembrar Nana Caymmi, filha mais velha de Dorival, adquiriu luminosidade ao show-tributo, que ainda incluiu, representando a família, um convidado mais do que especial, Danilo Caymmi, herdeiro, ao lado do irmão Dori, do ofício paterno de músico e compositor.
 
Tudo isso adicionado às maravilhosas cadências, ritmicidades e texturas brotadas por uma constelação de instrumentistas seletos e primorosos, como Gerson Silva dedilhando seu violão, ao longo de dezenas de amostras extraídas do belíssimo e monumental cancioneiro inventado pelo centenário homenageado.
 
Danny Nascimento, uma jovem e talentosa solista, elogiada pela homônima Daniela, também ajudou a abrilhantar a plateia naquela noite especialíssima. Acompanhada das vozes secundárias do MP7, Danny cantou, em versão moderna – e semieletrônica –, um dos audazes emblemas da Música Popular Brasileira, a Modinha para Gabriela, fielmente embasada no romance de Jorge Amado, outro precursor da baianidade. E seguiu firme no bis.
 
Dorival, o patriarca, completaria 100 anos de nascimento na quarta-feira passada, 30 de abril
(Foto: Arquivo/Agência A Tarde)
 
Com fisionomia, voz e estilo idênticos aos do mestre Dorival, Danilo Caymmi, filho mais novo, fez questão de recordar algumas preciosidades do pai e patriarca da família, entre elas a nostálgica Saudade da Bahia, a místico-aquática Caminhos do mar – parceria com Danilo e Dudu Falcão, conhecida na gravação de Gal Costa –, o samba cadenciado Acontece que eu sou baiano e uma infinidade de excertos da genial obra-prima do eterno cantor e compositor, que deixou para a posteridade centenas de peças de sutileza incomparável.
 
Uma dose mínima de inocência pôde ser aplicada ao repertório previamente selecionado para o espetáculo. Duas canções de Caymmi, originalmente concebidas para o público infantil, marcaram espaço cativo: Acalanto (“Boi, boi, boi / Boi da cara preta...”), na releitura do MP7, e o folclore lúdico Roda pião. Esta última fez toda a multidão, em sincronia com a melodia, fugir da inércia, propiciando um ambiente vibrante e descontraído.
 
Virgínia Rodrigues, a “Nana Caymmi negra”, teve ainda papel crucial na ocasião. Com sua indefectível feição vocal peculiar, análoga à da primogênita de Dorival, cujo aniversário de nascimento precedeu o de seu pai, morto aos 94 anos, Virgínia providenciou, ao embalar milhares de pessoas que lotaram o Largo do Farol da Barra, a interpretação de sucessos como É doce morrer no mar, poema amadiano estigmatizado pela profunda melancolia das águas marítimas e musicado pela sensível habilidade caymmiana.
 
Porém, entre os momentos memoráveis, o show atingiu culminância com a concretização de um ineditismo que parecia impossível. No palco, a versátil Daniela Mercury conseguiu um “dueto” virtual com Carmem Miranda (1909-1955) em um dos clássicos do reverenciado, o samba O que é que a baiana tem?, com direito a inumeráveis projeções em vídeo da “pequena notável”, que teve a incumbência de dar o pontapé na exportação da MPB para o dinâmico mercado exterior.
 
Outra parte do evento, caracterizado por sua sonoridade e ritmicidade privilegiadas, que não devemos esquecer é a união de Daniela e seus cicerones interpretando Marina, como se fosse um típico encontro familiar. Cada artista cantou um fragmento do samba-canção que exala (anti) romantismo na integralidade de sua letra. Para compensar, a anfitriã, em conjunção com Danilo, Virgínia e Danny Nascimento, parabenizou Dorival, mencionando o nome do grande aniversariante no final.
 
E mereceram aplausos corajosos de um público heterogêneo que aprecia sua arte instigante, assim como em todas as músicas apresentadas. Mais do que espetacular, foi um momento único e extraordinário, por ser um jeito bem diferente de prestigiar e reverenciar o centenário desse venerado cantor e compositor, pescador de pérolas da música, um incessante patrimônio a serviço da Bahia, de sua gente e de seu formoso cotidiano, batizado de Dorival Caymmi.

Comentários

Hugo Gonçalves disse…
Hugo,

Viajei nesta resenha poética do encontro de Daniela e convidados.

Jaci.
Hugo Gonçalves disse…
OI AMIGO BEIJINHOS.................. k saudades.

(Karla Achy)