Como o Kid Abelha reconquistou seu carisma

Banda pop carioca, com Paula Toller à frente, conseguiu superar uma séria crise resultante da saída de Leoni, membro vital para o sucesso em sua fase inicial, através de um disco ao vivo e de uma elaborada superprodução que originou uma turnê bem-sucedida e impulsionada pelos hits radiofônicos
 
Da esquerda para a direita: Bruno Fortunato, Paula Toller e George Israel, únicos integrantes remanescentes do Kid Abelha, rotulado como uma "fábrica de hits"
(Foto: Christian Gaul – 2011)
 
Logo após um exímio músico e compositor abandonar uma das mais importantes bandas pop-roqueiras nacionais, o Kid Abelha – então complementado pelo excêntrico sobrenome “e os Abóboras Selvagens” –, seus membros remanescentes definiram o rumo a ser trilhado. Eles já haviam lançado dois álbuns de estúdio, transmutando-os numa máquina fenomenal de fazer sucessos e carimbando o passaporte para o sucesso definitivo, e um ao vivo, gravado às pressas em um ambiente de crise e vacilações. Mas conseguiram dar uma volta por cima ao criarem um projeto radicalizante.
 
O baixista Leoni foi expulso do Kid Abelha em meio a incidentes em um show de Léo Jaime no Estádio de Remo da Lagoa Rodrigo de Freitas, na zona sul do Rio de Janeiro, no fatídico 23 de fevereiro de 1986. No turbulento episódio que maculou os anais do rock brasileiro, o cantor e compositor goiano, ícone dos anos 80, convidou, no palco, o Kid para entoar o hit A fórmula do amor, entretanto esqueceu de um simples detalhe: não chamou Leoni, seu parceiro na canção. Aquela apresentação integrou o festival Cidade Live Concert, patrocinado pela Rádio Cidade FM, a célebre 102,9 carioca, atualmente extinta, e pela produtora BB Vídeo, do músico e produtor Billy Bond.
 
Deixando a vocalista Paula Toller, o saxofonista George Israel e o guitarrista Bruno Fortunato isolados, Leoni, elemento fundamental no êxito do grupo em seus primórdios, como represália, deliberou planificar um itinerário artístico autônomo. “O Leoni começou a pirar nesta viagem de ser superstar numa época de caras e bocas estimuladas pela (paulista) Fabiana (Kherlakian, namorada dele na época, hoje produtora de moda). A ideia inicial dele era fazer um disco solo e continuar no Kid, mas começou a rolar mil climas, mil fofocas”, relembrou George, em entrevista ao jornalista carioca Jamari França.
 
Em meio a incidentes no Rio, em 1986, Leoni (o segundo, da esquerda para a direita) abandonou a banda pelo fato de não comparecer ao show de Léo Jaime
(Foto: Flávio Colker – 1984)
 
Finalmente, o ex-abóbora resolveu fundar e capitanear o efêmero conjunto Heróis da Resistência, enquanto Paula, George e Bruno procuraram alternativas viáveis para que a banda sobrevivesse no espectro do BRock. Converteram de imediato o baterista Claudinho Infante, convocado para gravar o segundo LP, Educação Sentimental (1985), em membro efetivo, e contrataram prodígios musicais, a começar pela baixista Cláudia Niemeyer, “uma grande musicista, uma figura exótica e um reforço no lado feminino”, como definiu Jamari. Antes, Cláudia tocara com outros artistas, como Rita Lee.
 
Também foram convidados o tecladista Marcelo Lima, o trompetista estadunidense Don Harris, que reforçou orquestralmente a sonoridade do saxofone do Kid Abelha, e o percussionista Julio Gamarra, oriundo do Peru (por sinal, ele era baterista de apoio entre 1984 e 1985). O grupo, ainda com perspectivas hesitantes e nebulosas, gravou, em 27 de setembro de 1986, no Palácio das Convenções do Anhembi, em São Paulo, o álbum Ao vivo. Inicialmente, foi cogitado o registro de duas noites de show em videocassete e em vinil – DVD nem existia e CD era artefato supérfluo –, mas houve problemas técnicos com as imagens capturadas em uma das fitas.
 
Seu repertório culminava na releitura de oito de seus primeiros sucessos. Para compensar, o trabalho, que teve a ostensiva colaboração do engenheiro de som português Paulo Junqueiro, com quem a banda viria a trabalhar em discos posteriores, incluiu um número inédito, Nada por mim, de autoria de Paula Toller e de seu então namorado, o líder dos Paralamas do Sucesso, Herbert Vianna. Pérola da nossa música, ela havia sido gravada previamente pela cantora Marina Lima – na época apenas Marina – no LP Todas, de 1985. Enquanto o grupo precisava se reestruturar com novos arranjos, melodias, harmonias e composições, Nada por mim foi executada com regularidade.
 
Álbum gravado ao vivo no Anhembi, em São Paulo, foi uma das alternativas procuradas pelo Kid num panorama incerto
(Capa: Márcio Pucci, com fotos de Kátia Arantes)
 
Guinada atomatada
 
Uma guinada rebelde, e rubra que nem tomate, nos atalhos da carreira, do carisma e do prestígio: era justamente o que Paula, George, Bruno e Claudinho necessitavam. O quarto disco da banda, e terceiro gravado em estúdio, chegou às lojas somente em agosto de 1987 pela gravadora WEA, sob o selo Elektra, inaugurando o frutífero e audacioso diálogo entre Paula, nas letras, e George, nas músicas, que logo seria consolidado. Produzido por Liminha, um dos mais requisitados da indústria fonográfica, e Junqueiro, o álbum, batizado de Tomate, selou a mudança de rumo na trajetória dos abelhas.
 
Tomate é fruto de uma exaustiva rotina de 700 horas de ensaios e gravações no célebre estúdio Nas Nuvens, do próprio Liminha, no Rio, e mixagem no Eden Studios, em Londres – o disco também marcou a estreia internacional do Kid. Graças a essa superprodução, o conjunto passou a conquistar legiões de fãs no exterior, tocando até em Nova York. Para a concepção desse LP, um time de músicos talentosos, criteriosamente selecionados, foi incorporado ao quarteto, com especial destaque para o baixista Nilo Romero, pertencente à banda de Cazuza (1958-1990), de quem também era parceiro.
 
Com a incumbência precípua de acrescentar rastros de suingue à ritmicidade florescida pelos demais instrumentos em uma atmosfera produtiva, através das linhas criativas do seu baixo potente, Nilo viria a produzir os três álbuns seguintes, Kid (com George Israel, 1989), Tudo é permitido (1991) e Iê iê iê (com George Israel, 1993), além do trabalho mais recente da banda, Multishow ao vivo – 30 anos (2012), CD e DVD comemorativos ao seu trigésimo aniversário. Um adendo: compôs, ao lado de Cazuza e George, o hino Brasil, emblema do poeta-mor do rock dos anos 80, que seria interpretado por Gal Costa, por Cássia Eller (1962-2001) e pelo próprio Kid.
 
O conteúdo do álbum é sintetizado pelas oito faixas – no vinil, quatro em cada lado. No lado A, o rock Me deixa falar introduziu um aspecto sonoro inédito, seguido do rap-rock Eu preciso, no qual Paula e George cantam em dueto, tendo em segundo plano uma instrumentação suingada, com ênfase na firmeza da bateria; a romântica No meio da rua, cuja letra combina a vivência solitária de uma mulher com discos voadores; e o funk Dança. No lado B, a contagiante faixa-título, com arranjo que privilegia os teclados e efeitos eletrônicos; o jazz Leão, tributo às pessoas que trabalham nas casas noturnas; a lentíssima e filosófica Mais louco e, para encerrar, o pop Amanhã é 23, de vertente subjetiva.
 
Da esquerda para a direita: Paula, Claudinho, George e Bruno
Com a vocalista assinando a totalidade das letras, Tomate inaugurou a parceria entre ela e George na feitura das músicas
(Foto: Bob Wolfenson – 1987)
 
Todas as letras, que traziam aos ouvintes narrativas poéticas jamais exploradas pela banda até então, descartando a ingenuidade, a inocência e a melancolia adolescentes, estigmas dos álbuns anteriores, levaram a assinatura de uma Paula Toller sincera e completamente maturada. Quanto às melodias, elaboradas, inovadoras e que fizeram o LP soar heterogêneo e agressivo, todas elas foram primorosamente germinadas pelo saxofonista, com apenas duas honrosas exceções: Leão, composta por Paula e Bruno Fortunato (uma das parcas músicas feitas com o auxílio do guitarrista), e Mais louco, de Paula, George e Nilo Romero.
 
Por apreciar o poema O tomate (Da crítica de arte), de Murilo Mendes (1901-1975), Paula batizou o disco com o nome do fruto, comparado a uma escultura monumental pelo poeta mineiro. A sofisticada concepção gráfica do vinil, desenvolvida pela CVS Artistas Associados, simula a textura granítica e traz na capa um sutil retrato do tomate, em formato quadrangular, clicado por Paulo Vainer, e na contracapa a fotografia dos quatro membros do Kid, abraçados entre si, também quadrangular, feita por Bob Wolfenson.
 
O fotógrafo paulista, conhecido por captar pela sua lente poses de uma infinitude de celebridades, ainda clicou os semblantes de cada integrante para a parte interna da capa – dupla, por não haver encarte –, onde foram colocados em concordância preciosa com as letras. Na contracapa, há, abaixo da foto da banda, a transcrição de alguns trechos extraídos do poema que inspirou a vocalista no batismo do LP e na composição da faixa-título:
 
“Fico tatibitate* diante do tomate;
um crítico de arte diante do tomate."
 
"O tomate é um falso cometa, um falso Marte;
o tomate ainda pensa em brilhar, sem nenhum tato.”
 
*Gago, tartamudo, vacilante.
 
Nome do disco Tomate homenageou Murilo Mendes, por Paula Toller ter apreciado poema do escritor
(Capa: CVS Artistas Associados, com foto de Paulo Vainer)
 
Inovações numa apoteótica turnê
 
Impulsionado pelos êxitos radiofônicos de Amanhã é 23 – tema de Glorinha da Abolição, humilde personagem de Malu Mader na novela O outro (1987), da TV Globo –, Me deixa falar e No meio da rua, o Kid Abelha excursionou pelo Brasil a bordo de um aparato nunca visto no show business. Os espetáculos da turnê Tomate eram elaboradíssimos sobretudo no visual, tanto do palco quanto dos integrantes e músicos convidados, e ainda na iluminação e nos efeitos especiais. Num show apoteótico, realizado no ginásio Maracanãzinho em 23 de janeiro de 1988, considerado o apogeu da excursão, Paula, de cabelos louros, era aplaudida como sex symbol; no entanto, a vocalista renegou tal rótulo.
 
“Todos foram unânimes em elogiar o espetáculo, cheio de truques cênicos, como a multiplicação de Paulas; a certa altura havia no palco cinco dublês vestidas exatamente como ela, de peruca loura e óculos, e ninguém sabia que era ela, tinha hora que entrava uma fazendo dublagem e a Paula cantando dos bastidores”, escreveu Jamari França. Segundo o jornalista, porém, a “abelha rainha” teve um inesperado detalhe erótico: ela subiu ao palco com 27 centímetros de saia num show sofisticado, episódio que gerou intensa repercussão na imprensa.
 
Paula era aplaudida como sex symbol em show histórico no Maracanãzinho, em janeiro de 1988, mas ela mesma renegou tal posto
(Foto: Jorge Rosenberg – 23/01/1988)
 
O quarto LP do Kid Abelha, em contraste com a superprodução artística e musical, o sucesso nas rádios e uma vitoriosa turnê, vendeu em cifras computadas aquém das expectativas da gravadora: pouco mais de 100 mil cópias, embora fosse agraciado com o disco de ouro. Além disso, foi mal recebido pela crítica. Ao final da excursão de Tomate, o baterista Claudinho Infante, de influência jazzística, deixou o grupo por não se comprometer com o conceito de banda pop. Foi a partir daí que o Kid se tornou um mero trio, prosseguindo até a atualidade como uma autêntica “fábrica de hits”.

Comentários

Hugo Gonçalves disse…
Oi ,Hugo, muito obrigada, matenha me informada. abraços

Kelly Aguiar Mendonça (Campinas - SP)