Mixto de pop-rock nas areias escaldantes do Rio

Graças ao enorme sucesso de suas músicas, entre outros fatores positivos, estrelas do gênero que estava emergindo no Brasil se apresentaram ao ar livre, num palco em forma de asa-delta montado nas praias cariocas, para registrar suas presenças no Mixto quente, série de apenas oito programas exibidos no verão de 1986 pela TV Globo

Numa década de fantástica ebulição político-artístico-cultural em terras brasileiras como os incríveis anos 80, considerados, no entanto, como “a década perdida” sob o panorama econômico e social, proliferava, em quase todos os canais de televisão, uma quantidade exorbitante de programas musicais. Produtores e diretores de TV imediatamente lançaram esses tiros certeiros que se tornaram emblemáticos, com alvo para uma crescente juventude apaixonada pelo pop-rock nacional do período: o chamado BRock, aglutinação das palavras Brasil e rock, termo inventado por um de seus colaboradores, o intelectual, jornalista e letrista Nelson Motta.

Os musicais, impulsionados pelo dinamismo da indústria e do mercado fonográficos, pela execução maciça de hits nas rádios e pelo incremento de público nos shows, rapidamente seduziram uma geração eufórica, conquistando contínuas constelações de rapazes e de moças. Transcorrido um ano da edição de estreia do Rock in Rio, a onipotente Rede Globo, que havia transmitido o evento, decidiu repetir a dose com um programa atraente e inovador, prometendo dar continuidade ao êxito do megafestival em que aportaram dezenas de astros do Brasil e do exterior na capital fluminense entre os dias 11 e 20 de janeiro de 1985.

Apesar de as gerações subsequentes não terem vivenciado aquela ocasião, valem relembrar, por gentileza, uma síntese de como era aquela atração, a começar por seu sugestivo nome: Mixto (sic) quente. Era idealizado por Nelson Motta, que também apresentava e cuidava da supervisão musical, e pelo diretor Roberto Talma, supervisor geral, com direção de Vítor Paranhos, e exibido sempre nas jovens tardes de domingo, a partir das 17 horas, entre 5 de janeiro e 23 de fevereiro de 1986. Por que a Globo escolheu “mixto” e não “misto”, que é a forma correta? Realmente, a palavra “mixto” do nome do programa, com a grafia propositalmente equivocada – “x” no lugar de “s” – derivava do vocábulo inglês mix, que significa mistura.

Como o próprio nome já diz, o Mixto quente consistia num antológico mosaico de apresentações de artistas consagrados e inéditos à época, não somente do emergente BRock, como Lulu Santos, Léo Jaime, Barão Vermelho, Titãs, Ultraje a Rigor, Legião Urbana, Camisa de Vênus e Plebe Rude, aliados aos “dinossauros” Raul Seixas (1945-1989) e Rita Lee, mas também contemplava estrelas – veteranas e novatas – da Música Popular Brasileira, a famigerada MPB, que agradassem à mocidade independente, como Caetano Veloso, Gal Costa e Guilherme Arantes. Todos eles foram selecionados pelo jornalista roqueiro Tom Leão, de O Globo, que no programa assinava a produção e os textos.

Quase 40 graus de som

Um calor de 38 graus – quase 40 – deu início às atividades preparatórias do primeiro de uma série de oito edições a serem veiculadas em um só verão. Essa tórrida tarefa aconteceu nos dias 22 e 23 de dezembro de 1985, numa praia de São Conrado, zona sul carioca, a Praia do Pepino, onde foi armado um palco estilizado em formato de uma gigante asa-delta com uma torre de espelhos na ponta, desenhado pelo cenógrafo Mário Monteiro, onde os artistas previamente escalados se apresentariam com suas performances ao vivo, outro grande diferencial da atração. Aproximadamente 8 mil pessoas se agregaram em frente ao palco a fim de prestigiarem a gravação da miscelânea número 1.

Registrado ao ar livre, aproveitando a beleza natural da Cidade Maravilhosa, a princípio no Pepino, o programa sazonal estreou logo no primeiro domingo de 1986. Participaram daquela edição o grupo carioca Barão Vermelho – já com o guitarrista Roberto Frejat como vocalista e líder, meses após a inesperada abdicação de Cazuza (1958-1990), que àquela altura havia inaugurado uma vitoriosa carreira-solo, com o LP Exagerado – os baianos do Camisa de Vênus, capitaneados por Marcelo Nova, seu conterrâneo Raul Seixas, o binômio paulista RPM e Ultraje a Rigor mais seus conterrâneos punks do Cólera. De quebra, teve a presença do músico Robertinho do Recife para contagiar ainda mais o efervescente cenário pop-roqueiro oitentista.

Ao comparecer aos shows exclusivos que, ao serem compilados, originaram cada edição, a juventude descolada do Rio de Janeiro invadiu suas praias e suas areias escaldantes no crepúsculo vespertino a fim de observarem de perto seus ídolos, em geral nos finais de semana. Day after: muitos aficionados por rock passaram a assistir novamente aos mesmos espetáculos pela TV sem vacilo, merecendo oportunidades de captar cenas que expunham a imensa coletividade cantando e dançando na plateia de acordo com os ritmos gerados dos instrumentos ligados ou não a amplificadores e das vozes captadas pelos microfones de cada cantor ou backing vocal.

O Mixto quente, concebido para competir com a revista eletrônica Shock, da extinta Rede Manchete, uma das pioneiras atrações roqueiras no Brasil, que ia ao ar entre 1984 e 1988, também nas tardes dominicais, provocou, durante suas gravações, congestionamentos monstruosos no trânsito da orla marítima carioca, no trecho entre Gávea, São Conrado e Barra da Tijuca, todas áreas nobres e valiosíssimas. Conforme os jornalistas Hérica Marmo e Luiz André Alzer (2003), o musical era “uma amostra do impacto do rock brasileiro na programação televisiva do país” (p. 114). Isso fez com que a Globo investisse potencialmente na recuperação da sua audiência juvenil, devido ao refluxo de público, com parte migrando para sua principal concorrente, a Manchete, que estava em ascensão.

Mudança de endereço

Finda a exibição dos dois primeiros programas, a emissora teve a audácia de desmontar toda sua estrutura, com palco, equipe e todo o aparato necessário, e deslocá-la para a Praia da Macumba, no Recreio dos Bandeirantes, zona oeste. A justificativa da transferência das apresentações que gerariam as seis edições remanescentes para a Macumba foi de que os persistentes ruídos e as confusões dos shows no Pepino haviam incomodado o repouso e a bonança de um poderoso morador do local, o general João Figueiredo (1918-1999), quinto e último presidente do ciclo militar que perdurou por vinte e um anos, numa nação onde o regime democrático havia sido restaurado, sob o governo de José Sarney.

Já gravado em seu novo ambiente, o terceiro Mixto quente, transmitido em 19 de janeiro, revelou no vídeo as performances das bandas paulistas Titãs, Tokyo – que projetou o cantor Supla, o “Billy Idol nacional” – Premeditando o Breque, Sossega Leão e a new wave Gang 90, do grupo brasiliense Capital Inicial e dos cantores Lulu Santos, Vinícius Cantuária e Guilherme Arantes, que, assim como a Gang 90, colecionavam uma enorme legião de fanáticos no Rio. Um parêntese: enquanto Lulu tocava no palco de asa-delta, a plateia atirou muita areia no palco, mas o mestre do BRock acabou revidando.

A exibição de coletâneas extraídas de shows de astros do pop-rock brasileiro pela Globo, em pleno verão de 1986, primeira alta estação sob os ecos da alvorada da Nova República, foi o suficiente para fazer história e marcar uma época que magnetizou o público a qual a série era destinada: uma juventude que exalou os ares de liberdade ao potente som roqueiro. Mesmo com o fim do Mixto quente, cuja previsão inicial era apresentar 14 programas, porém a atração durou apenas oito por não ter atingido a audiência esperada, a emissora prosseguiu, até o ocaso da década de 80, criando, aperfeiçoando e transmitindo outros musicais.

Entre eles destacam-se o Globo de ouro, que era a versão televisiva das paradas de sucesso típicas do rádio, já apresentada desde 1972 e que saiu do ar em dezembro de 1990, os clipes do Fantástico, o alegre Cassino do Chacrinha, que só foi extinto logo após o falecimento do Velho Guerreiro, há exatos 25 anos, e os especiais Chico e Caetano, também datado de 1986, Paralamas e Legião juntos e Barão Vermelho e Titãs, ambos de 1988, nos quais seus respectivos anfitriões receberam convidados da música, da dramaturgia e de outras artes. Foram sensações que atraíram e encantaram uma multidão que combinava festividade e rebeldia num tempo tão memorável.

Referências

ALZER, Luiz André; CLAUDINO, Mariana. Almanaque anos 80. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

BRAUNE, Bia; RIXA. Almanaque da TV. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.

MARMO, Hérica; ALZER, Luiz André. A vida até parece uma festa: toda a história dos Titãs, 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.

MEMÓRIA GLOBO. Mixto quente. Rio de Janeiro: TV Globo, 2012. Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273-258202,00.html. Acesso em: 7 jul. 2013.

Comentários

Hugo Gonçalves disse…
Gostei muito do trabalho Hugo . Bom dia !!!!
(Márcia Araújo)