Um compositor de destinos

Dono de uma memorável obra-prima musical e literária, Caetano Veloso fez neste ano 70 anos de uma longeva jornada dedicada à vida e à arte

Suas quatro décadas de carreira fizeram de Caetano (à esquerda da cantora Maria Gadú) um ícone reverenciado no mundo
(Foto: Divulgação)

Cantor, compositor, arranjador, produtor, escritor e poeta. Estes são – e continuam sendo – as artes e os ofícios de um dos nomes mais prestigiados da música popular brasileira. Aos 70 anos, completados na terça-feira passada, 7, que no calendário católico é conhecido como o dia de São Caetano (daí o nome do artista), Caetano Veloso carrega na bagagem uma obra-prima inestimável e duradoura, que se renova a cada geração, fruto de um talento experienciado e acumulado durante quatro décadas.
Quinto dos oito filhos de Claudionor Viana Teles Veloso, a Dona Canô, e José Teles Veloso, o Seu Zeca, funcionário dos Correios falecido em dezembro de 1983, Caetano Emanuel Viana Teles Veloso nasceu na pacata Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano. Sua vocação artística se iniciou desde criança, quando despertou interesse pelas artes plásticas. No entanto, sua maior paixão foi a música. Influenciado por seu conterrâneo baiano João Gilberto, de quem mais tarde se tornaria amigo, Caetano ingressou na carreira musical interpretando canções de Bossa Nova.
No começo dos anos 1960, o jovem Caetano, já fixando residência em Salvador, assinou críticas de cinema para o extinto jornal Diário de Notícias, dos Diários Associados. Em 1963, enquanto cursava a Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia (Ufba), conheceu Gilberto Gil, Gal Costa e Tom Zé. Dois anos depois, veio, pela gravadora RCA (hoje Sony Music), seu primeiro registro fonográfico, um compacto simples contendo as faixas Cavaleiro e Samba em paz. Paralelamente, ele acompanhava Maria Bethânia, sua irmã mais nova, no show Opinião, realizado no Rio de Janeiro.
“Sem lenço, sem documento”
O ano de 1967 foi decisivo para a consagração nacional de Caetano Veloso. Pouco depois de gravar, com Gal Costa, seu primeiro LP, Domingo, já pela Philips (hoje Universal Music), inspirado em elementos bossa-novistas, ele participou do III Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record, em São Paulo, apresentando Alegria, alegria. A canção, que faturou o quarto lugar, transformou-se, junto com Domingo no parque, de Gilberto Gil, segunda colocada naquele festival, num emblema de uma tendência artística que se tornaria conhecido como Tropicalismo. Meses depois saiu, de fato, sua estreia individual em LP, com as pérolas Tropicália – um dos hinos do movimento –, Superbacana e Soy loco por ti, América, além de Alegria, alegria.
Idealizado e liderado, dentre outros, por Caetano, Gil, Tom Zé, Gal, pelo conjunto Os Mutantes e pelo poeta baiano José Carlos Capinan, o Tropicalismo revolucionou o cenário cultural brasileiro a partir de 1968, com o lançamento do álbum coletivo Tropicália ou Panis et circensis. Também no mesmo ano, desafiando a ditadura militar, compôs o veemente hino É proibido proibir, que acabou sendo desclassificado da etapa brasileira do III Festival Internacional da Canção, da TV Globo, pelo fato de o cantor ser vaiado pela plateia no Teatro da Universidade Católica (Tuca), em São Paulo, onde ele se apresentava.
Na ocasião, ele bradou o inesquecível discurso ácido: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada”. E prosseguiu: “Eu hoje vim dizer aqui, que quem teve coragem de assumir a estrutura de festival, não com o medo que o senhor Chico de Assis pediu, mas com a coragem, quem teve essa coragem de assumir essa estrutura e fazê la explodir foi Gilberto Gil e fui eu. Não foi ninguém, foi Gilberto Gil e fui eu!”. “Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender. Mas que juventude é essa? Que juventude é essa?”, interrogou.
Em dezembro daquele ano, sob o pretexto antipatriótico, por violarem a bandeira e o hino do Brasil, Caetano e Gil foram presos, sendo logo soltos em fevereiro de 1969, sob o regime de confinamento. Ambos partiram para o exílio em Londres, acompanhados de suas esposas, as irmãs Dedé e Sandra Gadelha, respectivamente. Na capital britânica, Caetano lançou, em 1971, o LP Caetano Veloso, cujo repertório é integrado, em sua maioria, por músicas em inglês, como London, London, regravada pelo grupo de rock RPM no disco Rádio pirata ao vivo, de 1986, estourando-a nas paradas do Brasil.
“Terra, terra...”
Tanto Caetano Veloso quanto Gilberto Gil regressaram à sua pátria no início de 1972. Marcando sua volta, Caetano absorveu as tendências do reggae no álbum Transa, gravado em Londres em meados do anterior. No final daquele ano, nasceu seu primeiro filho, o músico Moreno Veloso; obteve, com Chico Buarque, um registro memorável no Teatro Castro Alves, que daria origem a um disco, intitulado Caetano e Chico juntos e ao vivo; e lançou Araçá azul, considerado menos comercial na trajetória do cantor e compositor. Foi um período fértil. Junto com Gil e Gal Costa, em 1974, gravou, ao vivo, o LP Temporada de verão.
O ano de 1975 balizou o lançamento simultâneo dos álbuns Joia e Qualquer coisa. Enquanto a capa do primeiro foi censurada, por trazer uma ilustração de Caetano, sua então esposa Dedé e seu filho Moreno – então com dois anos –, feita pelo próprio artista, a de Qualquer coisa era uma releitura do último trabalho dos Beatles, Let it be (1970). Tendo como embrião o espetáculo Nós, por exemplo, que marcou a inauguração do Teatro Vila Velha, em Salvador, em 1964, Caetano, ao lado de Gil, Bethânia e Gal, se reuniram, em 1976, para formar o grupo Doces Bárbaros, de matiz hippie, que originou um LP homônimo e percorreu o Brasil em turnê. Por sugestão de Bethânia e Gal, o vinil, duplo, saiu com a íntegra do espetáculo ao vivo.
Em seguida vieram os álbuns Bicho, de 1977, com os sucessos Odara, Gente, Tigresa e O leãozinho, e Muito, de 1978, tendo como destaques Sampa, uma homenagem à cidade de São Paulo, e Terra. A produtiva década de 1970 encerrou com o antológico Cinema transcendental, de 1979, impulsionado pelas canções Lua de São Jorge, Beleza pura (que se tornou famosa na interpretação do conjunto A Cor do Som), Menino do Rio (também interpretada por Baby do Brasil, então Baby Consuelo), Oração ao tempo, Trilhos Urbanos, que retrata as reminiscências de Santo Amaro, e Cajuína, homenagem póstuma ao poeta Torquato Neto, seu colega de Tropicália, que havia se suicidado em 1972.
“Outras (e novas) palavras”
A década de 1980 foi iniciada com o lançamento de Outras palavras, em março de 1981. Esse álbum, produzido pelo próprio Caetano, lhe credenciou seu primeiro disco de ouro, vendendo 100 mil cópias. Tal êxito comercial foi alavancado pelos sucessos Lua e estrela, composta por seu então baterista Vinícius Cantuária, e Rapte-me, camaleoa, uma homenagem à atriz Regina Casé, além da faixa-título, tributo à língua portuguesa numa incursão poética de vanguarda. Nesse disco, Caetano também reverenciou a também atriz Vera Zimmermann (Vera gata), o quarteto humorístico Os Trapalhões (Jeito de corpo) e o estado de São Paulo (Nu com a minha música).
Cores, nomes, de 1982, trazia Queixa, Trem das cores, Sina (de Djavan, com direito a participação dele), Meu bem, meu mal (sucesso na voz de Gal) e Um canto de afoxé para o bloco do Ilê, composta em parceria com Moreno, na época com nove anos. Nos anos seguintes, sua popularidade cresceu no exterior, em particular em Portugal, na França, em Israel e nos países africanos. Caracterizado pela influência do então emergente rock nacional, Caetano lançou os discos Uns, de 1983, incluindo os hits Eclipse oculto e Você é linda, e Velô, do ano seguinte, destacando-se Podres poderes, O quereres, a romântica balada Shy moon (com participação do inglês naturalizado brasileiro Ritchie) e Língua, rap cantado em dueto com Elza Soares.
Em outubro de 1985, o músico realizou um show acústico no hotel Copacabana Palace, no Rio, que originaria, um ano depois, o álbum Totalmente demais, que vendeu cerca de 250 mil cópias. O repertório desse LP mesclava composições próprias, algumas das quais anteriormente interpretadas por outros artistas (como Vaca profana e Dom de iludir, eternizadas por Gal, e Nosso estranho amor, que Marina Lima dividia os vocais com Caetano), e sucessos de autores diversos. Comandou, em parceria com Chico Buarque, o programa de auditório mensal Chico e Caetano, na Rede Globo, também em 1986, com a presença de convidados especiais.
O fim da década foi marcado pelo flerte de Caetano Veloso com o então nascente axé music, perceptível nos LPs Caetano, de 1987, e Estrangeiro, de 1989, trazendo o hit Meia-lua inteira, composto pelo então novato Carlinhos Brown, percussionista de sua banda, e incluído na trilha sonora da novela Tieta, da Rede Globo. Este último, produzido por Arto Lindsay em Nova York, foi bem aclamado pela crítica especializada estrangeira, assim como Circuladô, de 1991, Livro, de 1997, e Noites do Norte, de 2000.
Caetano se multiplica
Fruto do casamento do artista com a atriz e empresária carioca Paula Lavigne – de quem se separou em 2004 – seu segundo filho, Zeca, veio ao mundo em 1992. Para celebrar os 25 anos do Tropicalismo, em 1993, Caetano e Gil retomaram a parceria com Tropicália 2. O grande êxito do disco foi o rap Haiti, uma crítica à situação sociopolítica do país, além de tributos ao Cinema Novo, ao Carnaval baiano, ao ex-titã Arnaldo Antunes, a Jimi Hendrix e ao sambista baiano Riachão. O repertório de Fina estampa, CD lançado no ano seguinte, é composto exclusivamente de músicas em espanhol compostas por grandes nomes da música latino-americana.
Em 1997, nasceu seu terceiro filho, Tom, o segundo com Paula Lavigne, e escreveu o livro Verdade tropical, um profundo testemunho pessoal acerca dos aspectos e acontecimentos vinculados ao movimento tropicalista, que completou 30 anos. A execução nas rádios da regravação de Sozinho, do cantor e compositor Peninha, fez com que o álbum ao vivo Prenda minha, de 1998, alcançasse a marca de um milhão de cópias vendidas na carreira de Caetano.
Juntamente com seu amigo de longa data, o “maldito” Jorge Mautner, Caetano Veloso lançou, em 2002, o CD Eu não peço desculpa. Dois anos depois, no disco A foreign sound – "um som estrangeiro", em português – o cantor interpretou clássicos da música estadunidense e inglesa. Seus trabalhos mais recentes são , de 2006, no qual ele retorna à essência roqueira, Zii e Zie, lançado em 2009, cuja sonoridade resulta do cruzamento do rock com o samba, e Caetano Veloso e Maria Gadú – Multishow ao vivo (2011)
Um gênio da nossa cultura, seja inventivo, romântico ou contestador, comparado internacionalmente a astros do calibre de John Lennon, Paul McCartney, Bob Dylan, dentre outros. Agora, aos 70 anos, o onipresente Caetano, um ícone vivo reverenciado universalmente, prossegue cantando para todas as multidões inúmeras canções que fizeram história e permanecem no imaginário coletivo das pessoas, ajudando a exportar a MPB para os quatro cantos do planeta. Ave Caetano!

Comentários

Lígia Costa disse…
Hugo, que primor informativo. Parabéns!
Soube de você em uma conversa com uma irmã, bibliotecária da Fundação Gregório de Matos, não resisti e procurei o seu blog. Sou professora de Língua Portuguesa e escrever também é um dos meus grandes prazeres.
Vou divulgar esse seu espaço para que meus alunos possam experimentar o mesmo encanto literário que que experenciei lendo os seus textos.

Abçs!

Lígia Costa