No plenário, uma negra valente

Entrevista: Olívia Santana

Ouvidora-geral da Câmara Municipal de Salvador, a pedagoga e vereadora comunista batalha ardorosamente em prol da educação e dos direitos dos pobres, das mulheres e dos afrodescendentes

Olívia: “Eu era muito religiosa, mas sempre tive interesse pelas questões sociais e acreditei em que nós podemos mudar as coisas aqui e agora.”
(Foto: Divulgação/Câmara Municipal de Salvador)

Em seu terceiro mandato consecutivo como vereadora pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B), Maria Olívia Santana, 43 anos, é defensora corajosa dos direitos da população de Salvador. Faz da educação e dos direitos de duas parcelas minoritárias da sociedade – as mulheres e os afrodescendentes – suas principais bandeiras de luta. Olívia, popularmente alcunhada “a negona da cidade”, ingressou na carreira política durante o movimento estudantil pós-redemocratização, na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (Ufba), onde graduou-se em Pedagogia.

Membro fundador e uma das dirigentes da União dos Negros pela Igualdade (Unegro), a comunista preconiza a intensificação do combate ao preconceito étnico-racial. Olívia Santana exerce atividades legislativas na Câmara Municipal desde 2003, quando, na condição de suplente, assumiu a vaga efetivamente. Reeleita vereadora no ano seguinte, licenciou-se para ocupar a antiga Secretaria Municipal de Educação e Cultura (Smec), entre janeiro de 2005 e fevereiro de 2006, na primeira gestão do prefeito João Henrique Carneiro (PP), então filiado ao PDT.

Uma de suas iniciativas relevantes como secretária foi a adoção, na rede municipal de ensino, da disciplina História e Cultura da África. Voltou ao Legislativo de Salvador em 2006, e no mesmo ano concorreu à Câmara dos Deputados, conquistando 37.803 votos, entretanto não se elegeu. Após conseguir renovar seu mandato parlamentar em 2008, Olívia, além de ser a atual ouvidora-geral da Câmara Municipal para o biênio 2011/2012, é presidente da Comissão de Educação, Cultura, Esporte e Lazer e membro das comissões de Finanças, Orçamento e Fiscalização e Defesa dos Direitos da Mulher da Casa.

Nesta entrevista exclusiva, concedida por e-mail, Olívia relembra seus primórdios na esfera política, de espírita na sua juventude a vereadora, esclarece os desafios por quais a capital baiana passa, como os problemas no sistema público de ensino e a perda na dimensão artística e cultural do Carnaval e a Copa do Mundo de 2014. Também explica as vantagens das cotas raciais aplicadas nas universidades brasileiras, os problemas enfrentados pelos negros e pelas mulheres e suas ambições para as eleições do próximo ano, sem esquecer de esperanças melhores para o povo soteropolitano.

Como começou sua trajetória na militância política?

Olívia Santana – No movimento de juventude espírita. Eu era muito religiosa, mas sempre tive interesse pelas questões sociais. Sempre acreditei em que nós podemos mudar as coisas aqui e agora. Quando eu era secundarista, estudante do Colégio (Estadual) Manoel Devoto (no Rio Vermelho), participava bastante das atividades culturais da escola e, volta e meia, estava envolvida em movimentos de protestos, para melhorar as condições de funcionamento da escola ou das aulas. Tive a honra de ser aluna do mestre Zilton Rocha (conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, ex-vereador e ex-deputado estadual pelo PT), que botava a gente para pensar, para refletir.

Durante o período em que era estudante de Pedagogia, você fez campanha para quais candidatos?

O. S. – Haroldo Lima (ex-deputado federal e diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, ANP), que é um ser humano espetacular, eu sempre admirei. Aliás, foi o meu primeiro voto, pouco antes de entrar na universidade. Também votei e fiz muita campanha para Javier Alfaya (ex-vereador e ex-deputado estadual) e depois para Alice Portugal (ex-deputada estadual e atualmente deputada federal, única mulher na bancada baiana da Câmara dos Deputados).

Em sua opinião, qual foi a campanha mais memorável que você participou?

O. S. – A primeira campanha de Lula, em 1989. Foi linda, carregada de esperança. Uma militância aguerrida que saía em busca de convencer as pessoas a votar em um trabalhador. O PC do B era dirigido por João Amazonas (1912-2002). Ele pregava a aliança, o PT resistia, e ele dizia que, sem aliança, não chegaríamos à vitória. Aqui na Bahia eu fui designada pelo partido para ficar um mês em Brumado (cidade do sudoeste do estado), reforçando a campanha. Foi incrível! O interior era outro mundo. As pessoas eram muito arredias, não queriam Lula. Mas nós estávamos lá cumprindo ardorosamente o nosso papel de disputar voto a voto, de convencer e abrir mentes.

Qual foi o primeiro cargo eletivo que você disputou? Quando isso aconteceu?

O. S. – Bem. Fui presidente do DA (Diretório Acadêmico) de Pedagogia em 1988 e em 1990. Mas na política institucional, a minha primeira experiência foi a candidatura de vereadora em 2000. Tive 5.157 votos. Fiquei na suplência e assumi em 2003.

O apelido "negona", que notabilizou você em seus slogans eleitorais, surgiu como forma depreciativa ou carinhosa? A quem atribuiu essa alcunha?

O. S. – Eu mesma escolhi “A negona”, depois de ter usado “No peito e na raça”, em 2000. O publicitário João Silva criou o slogan “A negona da cidade”. Nós queríamos ressignificar o que era dito como insulto por gente preconceituosa sobre as mulheres negras, transformar em algo afirmativo. Conseguimos!

Salvador detém um dos piores indicadores nacionais de ensino e de desenvolvimento humano. Quais seriam as soluções para reverter esse quadro que nos preocupa tanto?

O. S. – O prefeito deveria eleger a educação como marca do seu governo, escolher um secretário de Educação com capacidade de assumir o desafio e dar total apoio à realização de um projeto político e pedagógico que envolva toda a rede municipal e também a sociedade num verdadeiro pacto de sucesso educacional. Investir em qualificação das estruturas das escolas, valorização do profissional e resgate do compromisso de todos com a escola pública. Salvador é uma cidade pobre, mas é possível gerir os recursos fazendo boas escolhas, elegendo prioridades que realmente sejam relevantes para elevar a qualidade das escolas.

“Salvador é uma cidade pobre, mas é possível gerir os recursos fazendo boas escolhas.”
(Foto: Valdemiro Lopes)

Embora seja um item contraditório, as cotas raciais ajudam a equacionar os problemas e obstáculos no ensino superior brasileiro?

O. S. – Sim, as cotas são um instrumento de correção de desequilíbrios históricos. É uma necessidade. Todos nós pagamos impostos, a empregada doméstica, o operário da construção civil, o bancário, o engenheiro, o empresário. É justo que todos compartilhem das universidades públicas, que são bancadas pelos nossos impostos. O negro não pode ser apenas a mão do peão que constrói os prédios das universidades. É preciso compartilhar também da educação que é oferecida nessa instituição. Os brancos estão mais representados na classe média e entre os ricos. Os negros, na miséria e na pobreza. Nosso caminho é mais tortuoso, cheio de obstáculos impostos pelo racismo e por uma estrutura de sociedade marcada pela desigualdade de classe, de raça e de gênero. Por isso, o desempenho médio de um estudante negro e pobre num vestibular pode ser mais relevante que um alto desempenho de uma pessoa branca, de classe abastada que teve todas as condições socioeconômicas atendidas para chegar aonde chegou.

Se o dia 13 de Maio, que comemora a Abolição da Escravatura, não traz nenhum valor significativo para os negros oprimidos, em contrapartida o Movimento Negro Unificado (MNU) reverencia o 20 de Novembro, Dia Nacional da Consciência Negra. Dentre as duas datas, qual delas celebra e valoriza?

O. S. – Não é só o MNU que celebra o Dia 20 de Novembro. Todas as entidades do movimento negro reverenciam o Dia da Consciência Negra como uma conquista. O 13 de Maio foi um importante gesto formal de abolição da escravatura, mas não veio acompanhado de políticas públicas de inclusão das mulheres e homens negros. Não promoveu reforma agrária, não teve nenhuma política educacional de massa voltada para os negros, o mercado de trabalho livre se abriu imediatamente para os imigrantes e não se deram oportunidades qualificadas para os negros. Muitas pendências ficaram sem respostas na Lei Áurea (sancionada em 13 de maio de 1888 pela princesa Isabel).

Para você, o 20 de Novembro, dia em que Zumbi dos Palmares, ícone da resistência do nosso povo afrodescendente, foi martirizado, em 1695, traz algum reflexo positivo para a negritude de Salvador?

O. S. – Todos os reflexos que pudermos extrair da experiência do Quilombo dos Palmares (em Alagoas). A memória favorece a autoestima. Resgatar a figura de Zumbi e a história do Quilombo dos Palmares nos dá identidade, revela a nossa resistência e a luta que houve em defesa dos negros como sujeitos autônomos, livres e capazes de conduzir um projeto de sociedade. Palmares durou quase 100 anos. Era um Estado livre dentro de um Estado opressor (o Brasil colonial). Uma experiência extraordinária para as condições da época.

O que você, como membro fundador de uma entidade representativa de defesa dos direitos dos afrodescendentes, organiza?

O. S. – O que eu organizo?! Bom, eu procuro continuar contribuindo com a nossa entidade, a Unegro (União dos Negros pela Igualdade), estudo para ampliar os meus parcos conhecimentos e estimulo muito os meus amigos e militantes a estudarem também. Atualmente estou participando da comissão que está organizando a celebração do Ano Internacional do Afrodescendente. Será um grande evento reunindo chefes de Estado e personalidades da luta contra o racismo.

Em relação aos direitos femininos, o que necessita melhorar?

O. S. – É preciso garantir salários iguais para as mulheres que desempenham as mesmas funções que os homens, a ampliação da formação educacional das mulheres, o acesso mais amplo ao mercado de trabalho em funções dominadas por homens, mas que geralmente oferecem melhores salários; fazer valer a Lei Maria da Penha (a Lei nº 11.340, sancionada em 7 de agosto de 2006 pelo então presidente Lula, que propõe reduzir a violência contra a mulher), para assegurar a integridade física e psicológica das mulheres para elas não sofrerem violência doméstica, ter políticas de enfrentamento do racismo e do machismo, por um Brasil e um mundo de igualdade.

“É preciso (...) fazer valer a Lei Maria da Penha, para assegurar a integridade física e psicológica das mulheres”
(Foto: Valdemiro Lopes)

Os negros e as mulheres são considerados minorias sociais. O que é preciso fazer para que os grupos minoritários estejam inseridos definitivamente no âmbito socioeconômico?

O. S. – Exigir que as empresas adotem programas de valorização da diversidade e abram oportunidades para negros e mulheres, que adotem políticas efetivas de inclusão. Dar uma virada na educação brasileira e garantir uma escola pública mais qualificada, elevar o nível da educação básica e garantir mais políticas de inclusão de negros e mulheres na graduação, nos mestrados, nos doutorados e em áreas técnicas que sejam de ponta e que tenham baixa presença feminina e negra. É preciso ter intenção de promover a igualdade escolhendo os melhores mecanismos.

Vemos o Carnaval de Salvador como um evento meramente turístico e comercial. Você acha que ele perdeu a essência cultural?

O. S. – Sim, estamos perdendo a dimensão cultural do Carnaval, pois só se pensa no mercado e no turismo. É uma mercantilização muito voraz da cultura e uma precarização da festa.

O que é necessário para que o nosso Carnaval seja democratizado?

O. S. – Temos que fazer uma conferência ou um congresso do Carnaval. Discutir democraticamente o conceito do Carnaval, o que deve ser a festa, as alternativas de modificação dos aspectos que consideramos problemáticos, a exemplo dos monopólios das filas dos blocos nos circuitos Dodô e Osmar, o direito de arena que os camarotes precisam pagar, a estética da festa, o lugar da criatividade nos processos de transformação do Carnaval, a padronização e o empobrecimento do Carnaval enquanto manifestação de cultura e arte. Está tudo muito igual, os blocos, os trios, aqueles balões enormes de patrocínio que impedem a visão dos blocos, a situação dos ambulantes, das famílias que se espalham nas calçadas para ganhar uns trocados no Carnaval, a situação dos cordeiros. Engraçado: o Ministério Público proíbe que os jegues puxem carroças na lavagem do Bonfim, mas não proíbe que os seres humanos puxem cordas para outros seres humanos no Carnaval!

A Copa de 2014 será benéfica para a população soteropolitana? Em quais aspectos?

O. S. – Temos que lutar para que a Copa não seja só um evento esportivo, mas uma oportunidade de melhorar o nosso sistema de transporte, de qualificação de mão de obra local para incorporar aos empregos que serão criados como decorrência, de conquistarmos uma política permanente de incentivo ao esporte, principalmente atendendo à juventude. Temos pautado esta agenda de discussão com o governo do estado e a prefeitura. A cidade e o povo precisam se beneficiar da Copa do Mundo e de todos os outros eventos de grande porte que Salvador sediará, como a Copa das Confederações e as Olimpíadas.

Quais são suas pretensões para o pleito municipal de 2012?

O. S. – Serei candidata a vereadora e vou batalhar para ver se conseguimos renovar este mandato, que é uma conquista da militância do movimento negro, das pessoas que acreditam na educação, na cultura e que defendem a democratização da cidade. Quando vejo as coisas que conseguimos fazer, os quadros que formamos no nosso gabinete e que hoje estão ocupando cargos nos governos federal e estadual, eu fico pensando que somos apenas um mandato de vereadora, mas que é carregado de ousadia!

Olívia, deixe uma mensagem otimista para o futuro da nossa cidade.

O. S. – Bem, eu quero muito que a população soteropolitana cresça a sua consciência política, abra mais espaço para o negro nas estruturas de poder e faça escolhas mais qualificadas para gerir Salvador. A nossa cidade é naturalmente linda, mas muito mal administrada. É preciso fazer da riqueza cultural de Salvador, da criatividade e força do nosso povo e da história de berço civilizatório da nação algo que nos impulsione a transformar o presente e o futuro da cidade. Dizer aos meus irmãos e irmãs negros que lutem, tenham projeto de vida, denunciem o racismo e se lancem a construir uma sociedade sem racismo, capaz de socializar a riqueza e promover justiça social.

Comentários

Hugo Gonçalves disse…
Maravilha! Grande abraço e sucesso!

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Juliana Wândega
Assessora de Comunicação
Vereadora Olívia Santana
71 99842517

28 de julho de 2011
Hugo Gonçalves disse…
Olívia,

Ao publicar sua entrevista neste blog, hoje à tarde, esqueci de autorizar a você para inserir suas três fotos que a ilustram. Mesmo assim, há algum problema?

Obrigado,

Hugo Gonçalves

28 de julho de 2011
Hugo Gonçalves disse…
Hugo,

Não há nenhum problema. Gostei muito do seu trabalho. Você é um profissional competente.

Um abração!

Olívia Santana

29 de julho de 2011