Desabrigado do Curralinho


Quando saio do meu lar, nas plácidas manhãs, focalizo, com certa melancolia e indignação, um senhor anônimo, modesto cidadão brasileiro, estático, parado na mesma moradia que ele mesmo armou. Sobrevivendo com escassez de víveres, aquele mendigo, aparentando estar com idade cinquentenária – exata ou superior –, desassistido como outro qualquer, convive com a incipiência de distribuição equitativa de renda no país. Ao vê-lo deitado no seu pequeno abrigo improvisado, fico demasiadamente perplexo e estarrecido.

Aquele ente paupérrimo, miserabilíssimo e afrodescendente faz do final de um logradouro de altura impecável na Boca do Rio um minúsculo habitáculo egocêntrico, para si só. O seu “domicílio” fixo é o fim de uma antiga estrada barrenta, outrora com esgoto visivelmente correndo, atualmente asfaltada, infinitude semidesértica em zona civilizada: a Estrada do Curralinho. Desconheço sequer acerca do seu nome, da sua biografia e do seu dia a dia, porém é um indivíduo alheio às ações pragmáticas e voluntárias de promoção social.

A “residência” improvisada pelo mendigo, utilizando-se da lógica do bom e velho jeitinho brasileiro, é, na realidade, uma tenda montada ao ar livre, construída à moda arcaica, com madeiras e telhas de amianto, do tipo Eternit. Localiza-se no mesmo muro onde, na sua porção superior, tem como referência a inscrição “BORRACHARIA 2 IRMÃOS”, assim mesmo, em letras garrafais maiúsculas. Trata-se de uma desativada oficina mecânica de automóveis, na outra face da pista, de frente para um supermercado da rede Cesta do Povo, do governo da Bahia, que hoje abriga um restaurante popular, onde serve os tradicionais PFs, ou pratos feitos.

Confesso que o desejo e a ambição de um homem, maduro exclusivamente no seu âmbito etário, é escapar-se da inércia na qual se encontra, dormindo lamentavelmente em praça pública. Há hipóteses de que ele está inerte quando o tabuleiro onde a baiana vende iguarias típicas – especificamente o acarajé e o abará –, entre a tarde e a noite, é desarmado. O senhor só pode sonhar, sonhar, sonhar em ser um super-homem em sua encarecida tenda, a despeito de sua alma e seu coração inocentes e sóbrios. Ironicamente, ele tem como indumentária uma camisa branca, tonalidade pacificadora, carregando o emblema do Super-Homem (Superman), um dos personagens ficcionais de magnitude notável.

Detentor de uma árdua circunstância, o aspirante a super-homem, por enquanto unicamente na sua promessa, conforme sua inequívoca roupa frugal elaborada com zelo, possui uma alvorada dificílima. O mendigo do finalzinho do Curralinho, um ente anfíbio, tendo um vicioso abrigo simultâneo casa-rua, sequer se levanta no tempo adequado a fim de deslocar-se para a sua legítima, autêntica e verídica tenda, a de alvenaria. Até onde vai o seu futuro? Muito hesitante, vacilando na vida presente.

Embora possa cogitar nos melhoramentos e aperfeiçoamentos dos seus costumes corriqueiros, ele é um ator da persistente passividade conspirada pelo capitalismo selvagem. Para oprimidos como ele, castigados, vitimados e expostos em função da superlotação comunitária, em urbes como Salvador, sua quimera esperançosa está anos-luz a ser perenemente concretizada em seu espírito. Sob o meu ângulo, especulo que aquele senhor pobre, vivendo na miséria absoluta, ao estar hospedado na modéstia de uma tenda livremente improvisada, não há noção do gigante déficit habitacional que nossa cidade, que completou 462 anos no último dia 29 de março, ostenta.

No interior da tenda, há, como mobília, somente colchão para o mendigo dormir, repousar e fruir sua aparente bonança, contrastando com o entusiasmo da simpática e peculiar humildade dos moradores da Boca do Rio. A cena que eu, como observador, presenciei sem pronunciar nenhum tema relativo ao anônimo objeto desta história, não há nada de cômico. É um gesto lacrimoso, apavorante, comovente, lamurioso e infeliz, não levando a sério a prática do voluntariado no nosso valente torrão.

Permanecer inerte diante de uma estrada onde o trânsito flui tranquilamente, prescindindo de sinais e de semáforos, e acomodar naquele abrigo vulnerável em ser obstruído, faz com que seu solitário habitante, beirando os cinquenta anos – não sei a idade precisa –, seja mais um no crescente conjunto dos necessitados. O lado ofensivo e marginalizante desse homem, cuja dinâmica deixou para trás e cuja ferramenta de sobrevivência é a mendicância, me deixou majoritariamente pasmado e em pânico. Um explícito paradoxo entre a casa de alvenaria e a tenda erguida às pressas perpetra em tudo o que é comunidade popular.

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