Reaberto o canto boêmio

Um dos atrativos da noite de Salvador, o Mercado do Peixe, no Rio Vermelho, teve sua reedificação inaugurada nesta sexta-feira, dia 10
Arisson Marinho/Correio*

Barracas de praia aniquiladas, baianas comercializando iguarias nos calçadões de pedra portuguesa, tendas improvisadas às pressas em lugar dos finados empreendimentos imobiliários erguidos em madeira e telha e um exíguo comboio de banhistas são retratos incendiários de um sumário verão assinalado em peculiaridades. Testemunhamos recentemente a divina (?) tragédia responsabilizada por fontes oficiais, o holocausto neutralizador de uma estação que já havia sido carcomida pela inconclusão das tendas de alvenaria amparadas sobre a areia. Há algum subterfúgio hipotético pairando na superfície arenosa, imbricada entre o oceano deserto e o continente substancialmente urbano?

Em concomitância com a semidesertificação da outrora atraente orla marítima, exuberância de súbito revogada pela demolição amplificada das 349 barracas deferida judicialmente com o voto de Minerva, nosso chefe do Executivo municipal, João Henrique de Barradas Carneiro, entregou com pompa e elegância as obras de reconstrução de um dos tradicionais núcleos de abastecimento da cidade. Mercado do Peixe, no Rio Vermelho, refúgio dos antológicos fins de tarde, paraíso das alvoradas noturnas, aprazível entreposto boêmio agrupando visitantes, dos nostálgicos aos calouros, hospitaleiro polo não apenas pesqueiro, mas de gêneros alimentícios incrementados. A sua requintada reinauguração, na noite de ontem, sob o beneplácito do senhor prefeito e de seu secretário de Serviços Públicos, Fábio Mota, adquiriu-lhe uma roupagem confortabilíssima. Mas, por singeleza, é apenas o recomeço do mercado.

Um dos entrepostos de iguarias e de colóquios (conversas informais) expelidos das mesas dos seus boxes – como se fossem as lojas em um shopping center – de Salvador, o sexagenário Mercado do Peixe metamorfoseou-se em seu terceiro estágio, mais arrojado, eficiente e satisfatório. Reunido mutuamente, após revitalização integral, por 36 bares, restaurantes e lanchonetes, forjados por permissionários, o mercado trouxe de volta a efervescência notívaga do Rio Vermelho. O edifício anterior, armado em módulos de concreto pré-moldado e datado de 1988, justapunha 33 boxes e, antes de ele ser posto abaixo, sofria com a caducidade da estrutura, a carência de higiene e limpeza e o fétido odor exalado reciprocamente.

Odor horrível de tamanha complexidade, óbvio, é gerado por uma mistura confusa de átomos nitrogenados provenientes da decomposição proteica dos peixes e frutos do mar, em companhia da ureia, outra substância nitrogenada geratriz do mau cheiro. Antes da demolição do mercado pré-moldado, vestígios de urina em sanitários escorriam por toda a área, alcançando o cúmulo da ameaça do ócio, da boêmia e do bel-prazer.

Pôr a agora recuperada praça de alimentação impregnada à direita do Largo da Mariquita, onde cada permissionário recepcionava em suas respectivas tendas de lona, para explorá-la em magnetizado alvoroço promovido pelo prefeito, seu séquito e seus comandados no entorno do terreno requalificado, estipulava cinco meses. Além das diferenciadas e geométricas manifestações morfossintáticas do recém-entregue mercado reerguido, seu atrativo é o novo esquema de iluminação, com luminárias, postes e refletores de última geração e uma inigualável clarificação cênica na tonalidade verde. Verde, sugestivamente, é o signo da esperança implicada na reabilitação do equipamento. Outro acessório primacial, adornador da fachada, são as surpreendentes lonas tensionadas brancas, permitindo a ressonância e iluminação ambiental do local.

Lonas de geometria triangular, assemelhando-se a embarcações, e de dimensões exacerbadas revestem com esmero o polo gastronômico, protegendo-o das mirabolantes intempéries.

Na cerimônia oportuna de reinauguração do point, complementado pela Praça Caramuru, a indefectível, suntuosa e transparente cantora Elaine Fernandes elogiou nosso comandante, oriundo de Feira de Santana, entoando a impávida canção Faz um milagre em mim, sucesso do cantor evangélico Régis Danese. Que milagre João Henrique, ressaltando suas promessas vanguardistas dirigidas às gerações vindouras, assegurou quando resolveu reumanizar publicamente o Mercado do Peixe e reordená-lo?

Milagre foi suportar bastante os reflexos tranquilizadores da luminescência esmeraldina do mercado novinho em folha. Nessas circunvizinhanças do verão, mais uma vez improvisado quanto à sobrevivência dos comerciantes emergentes (ex-barraqueiros), usufruir das exigências do moderníssimo agrupamento de comes, bebes e de uma massa autenticamente gentil intencionará a sua hospitaleira probabilidade. Bonificações como a reabertura simultânea do prédio, logo de cara, acrescentarão exitosos prognósticos de empregabilidade e rentabilidade a seus comerciantes.

Implantado no bojo de um plano ambicioso que pretende resgatar parte da história do Rio Vermelho, através de uma parceria público-privada (PPP) entre a prefeitura e a Cervejaria Schincariol, o conjunto de obras prevê, além do reerguimento do entreposto, um mirante, um restaurante panorâmico, um memorial ao português Diogo Álvares Correia, apelidado de Caramuru pelos nativos, e uma colônia de pescadores.

Tarefas acessórias embargadas pelo juiz Carlos d'Ávila Teixeira, mesmo responsável pela suspensão do prosseguimento das barracas na orla. Acredito no ritmo lento, "de formiguinha", da execução dos departamentos coadjuvantes de um complexo de lazer encravado em proporção jamais vista aqui em Salvador. Contrariando-se com a abstinência abrupta dos anexos do condomínio de 36 boxes, servidores reiniciam o atendimento e a recepção para sua obsessiva clientela reposta em órbita.

Estou convicto de que a perspectiva estética e funcional de vanguarda do Mercado do Peixe reatraia saudosistas das noites serenas, suaves, pacientes e ociosas da região onde ele se situa e adjacências e das demais localidades, bem como novatos, em grande parte simpatizantes da gastronomia. Já com as barracas lamentavelmente suprimidas em sua integralidade na orla, os soteropolitanos e turistas procuram escapar-se da traição e da inépcia recaídas em prejuízo incalculável dos proprietários dos imóveis. Retomar um dos velhos pontos diversionais e de encontro à nossa miscigenada gente baiana intervirá, quiçá, no seu rendimento próspero. Frutuoso consideravelmente do que nas praias agora incomuns e frequentadas em abundante timidez e refluxo.

Comentários