Dentro do mais puro conforto

Trânsito apavorantemente congestionado nas principais vias de uma selva de pedra gigantesca a caminho de cumprir meus compromissos invioláveis e intransferíveis. Foi assim – e sempre – o raio X do tráfego urbano diagnosticado por agentes especializados, não exclusivamente numa aquecida tarde de hoje, mas também em qualquer época. Para flexibilizar esse dilema rotineiro, estava acomodado num micro-ônibus executivo da empresa Bahia Transportes Urbanos, a BTU, equipado com ar-condicionado para que passageiros como eu possam se refrescar, daí a sua famigerada alcunha "frescão". É um veículo cuja carroceria encontra-se tingida externamente com as cores do nosso orgulhoso estado: vermelho (na parte superior) e azul (na porção inferior). De quebra, acabamento azul-marinho bem caprichado.

Sem nenhum sentimento de culpa, senti-me absolutamente aliviado na comodidade de um meio de transporte popular mais sofisticado, mais de primeira categoria, estando sentado no banco revestido de tecido especial azul índigo, enfeitado com listras diagonais verdes, azuis, amarelas e vermelhas enfileiradas verticalmente e alternadas. Da janela, vi passarelas guiando comboios de gente à esquerda e à direita, automóveis de todos os matizes adquirindo dínamos ininterruptos por todos os lados da urbe soteropolitana, coletivos enfileirados desordenadamente em estações de transbordo e abrigos de design pós-moderno instalados há quase dez anos, porém mal-cuidados... Independentemente do colapso infraestrutural e assistencialista marcante aqui na terceira maior cidade brasileira, sou apaixonado por ela.

Na totalidade dos logradouros, edifícios de magnitude impecável quanto sua feição arquitetônica combinam com locomotivas urbanas denominadas carros, ônibus, motocicletas, caminhões, homens e mulheres. Estamos em período eleitoral, sendo chegado o momento de escolher os representantes em nível federal (presidente, deputados federais e senadores) e estadual (governador e deputados estaduais). Um bom cidadão, assim como eu, expressa sua observância quanto ao processo seletivo através dos nomes dos candidatos e seus respectivos números do registro gravados em cartazes, balões, fachadas e muros inerentes à propaganda política. Vivemos acompanhados de signos simultaneamente, porque o habitat onde fixamos é uma "floresta de símbolos", parafraseando o poeta francês Charles de Baudelaire (1821-1867).

Quando estava no Rio Vermelho, lembro das noites boêmias, da ebulição cultural, da fantástica introjeção esquerdista e, sobretudo, do seu povo simplório. No Largo de Santana e nos seus arredores, mosaicos de sobrados coloridos, construídos no século XIX, são comparáveis aos do Pelourinho. Neles estão instalados, essencialmente, bares e restaurantes, a exemplo do Santa Maria, Pinta e Nina e da Casa da Dinha do Acarajé, fazendo do Rio Vermelho o suprassumo da boêmia baiana, ou melhor, o reduto do nosso encantamento noturno. Além disso, partidos e movimentos de esquerda marcam uma presença surreal na comunidade, sobretudo na Praça Vermelha, como é apelidado o largo por concentrar militantes progressistas, principalmente universitários, reformado por iniciativa da nossa primeira prefeita, Lídice da Mata.

Duas ladeiras íngremes, entrecruzando-se, entram e saem do Rio Vermelho. Avenida Cardeal da Silva, via de acesso vital para a Federação, para quem sobe para entrar por lá; Travessa Prudente de Moraes, para quem desce, saindo da Cardeal e chegando ao Rio Vermelho a partir do Largo de Santana. Rumo à Cardeal da Silva – eu dentro do microcoletivo executivo vermelho e azul da BTU, da janela fechada por causa do ar-condicionado, edificações de diferentes épocas me aprazem, viajando pela história de Salvador de um modo diferente. Visão inferior de uma avenida de vale, a Garibaldi, possibilitada por um viaduto. Os corrimãos de concreto armado desse primeiro viaduto que passa pela Federação, pintados de amarelo, apresentam fissuras e ferragens expostas pela ação do tempo. Ver esse descaso é mostrar-nos o descuido com os equipamentos primordiais para o escoamento das massas.

Uma vistosa torre de transmissão da quase cinquentenária TV Itapoan, canal 5, nos espanta em virtude da sua excêntrica e peculiar morfologia, se comparada a torres de outras emissoras: estruturas metálicas apoiadas sobre um colosso vertical de concreto armado. A sede da pioneira em televisão na Bahia baliza o final – ou o início, para aqueles que trafegam pelo sentido inverso – da Cardeal. Dando continuidade ao tour instantâneo na Federação, vem o segundo viaduto, permitindo ao passageiro ainda a visão da Garibaldi, porém rumo a outra principal via do bairro, a Rua Caetano Moura, onde se concentra a continuação do campus da Universidade Federal da Bahia (Ufba), constituído pela Faculdade de Arquitetura, pela Escola Politécnica. À direita da pista, há o Diretório Central dos Estudantes, o famoso DCE, espaço democrático entre a comunidade acadêmica.

Logo após o Cemitério do Campo Santo, um dos cemitérios bem cuidados com capricho, um terceiro viaduto, erguido acima da Centenário, outra avenida de vale de Salvador, passa sobre essa maravilha da engenharia, idealizada pelo urbanista Mário Leal Ferreira em seu plano urbanístico, com suas pistas planas e levíssimas. É impressionante averiguar que a Federação, por ser um bairro de topografia alta, possui três viadutos, todos eles construídos sobre avenidas superficiais, as conhecidas avenidas de vale. Sou conhecedor profundo da minha própria cidade, já sei alguns destinos, as topografias, por onde os viadutos passam, como as pessoas se locomovem e as paisagens arquitetônicas das construções que rodeiam o asfalto. Bom programa para escapar da minha monotonia e da minha melancolia, mas sem objetividades turísticas. Complemento das minhas obrigatoriedades semanais.

Viajar dentro de um veículo de primeira classe, para mim, é um privilégio, pois sinto-me hospedado num apartamento de um hotel cinco estrelas. O sofisticado interior azul-marinho, fascinante, me evoca o culto ao conforto, à mordomia, às regalias. O povo em geral gozar de uma mordomia digna de burguês é surreal, sobrenatural. Basta pagar apenas R$ 3 – corresponde à tarifa de um ônibus convencional, R$ 2,20, somada aos R$ 0,70. Como garantia, passeios estendendo-se do Imbuí até a Praça da Sé, com qualidade BTU, mesmo enfrentando as excrescências irresolvíveis de uma cidade repleta de um povo guerreiro e trabalhador, os temíveis congestionamentos. Entretanto, não cheguei até esse último itinerário. Meu compromisso era outro, confidencial, intransferível...

Comentários