Folia dos fossos sociais

O Carnaval de Salvador, maior festejo popular do mundo, deve ser plenamente democratizado e harmonizado para que não haja um abismo visível entre as duas classes socioeconômicas – uma mais avançada e de elevado poder aquisitivo, e outra excluída e vítima da miséria e da violência. Vivemos num país cujo regime é essencialmente democrático, no qual as pessoas possuem o direito efetivo, equitativo e sublime de participar das suas deliberações, mas nem todos o asseguram, gerando o extremo desequilíbrio. Enquanto uns, integrantes da classe média e dos mais abastados, se divertem em circuitos, outros, provenientes das regiões mais periféricas, convivem com a insegurança total. Tanto é que essa concentração desigual das massas soteropolitanas acaba por ultrapassar vergonhosamente os limiares da opressão e da maledicência.

Conforme a tradição, os sete dias de desfiles dos blocos em três circuitos estratégicos diferenciados – Dodô, estendendo-se de Ondina até o Farol da Barra; Osmar, do Campo Grande até a Praça Castro Alves; e Batatinha, no Pelourinho – são feitos para que o público em geral possa se contagiar, exorcizar seus tormentos confidenciais e enaltecer os personagens construtores do festejo em sua feição atual. A dupla Dodô e Osmar, cujas façanhas improvisatórias inventaram o trio elétrico, é exaltada pela maioria dos puxadores do "caminhão da alegria". Por tudo quanto é rua e avenida, é aconselhável ressoar a miscelânea rítmica, transparecendo-a sob o argumento democrático. Carnavalizar não resume-se ao axé, projetado nacionalmente por Luiz Caldas há 25 anos, abrindo passagem para a explosão de constelações de novos astros. Também há livre arbítrio no diálogo entre o axé e o samba, o pagode, o forró, a MPB, o rock, o reggae e o arrocha.

Reduto da elite envolvida nas negociações concernentes às indústrias do entretenimento e turística, o circuito alternativo Dodô (Barra-Ondina), próximo a bairros burgueses, tornou-se nestes anos o roteiro dominante da folia momesca graças à maior concentração de estabelecimentos da categoria – hotéis quatro e cinco estrelas e sedes de grandes blocos. Em contraposição ao proficiente e competitivo mercado carnavalesco capitaneado por magnatas e músicos mais eminentes, as mazelas da pobreza e do preconceito racial ensejam a pouca participação ou a ignorância das classes mais baixas, depreciativamente conhecidas como ralés, nas avenidas. De preferência, esses desprovidos de custódia social, econômica e cultural assistem aos desfiles na área central da cidade – constituída pelo Campo Grande e pela Rua Carlos Gomes –, formando o Circuito Osmar, e em bairros carentes, como a Liberdade e o Curuzu, eternizados pelo bloco afro Ilê Aiyê.

Não é só na Barra, em Ondina e na avenida, dínamos do Carnaval baiano, onde ele é mais assíduo e notório. O Pelourinho do Olodum e do afoxé Filhos de Gandhy, o Curuzu do Ilê Aiyê, conforme mencionamos anteriormente, o Periperi do Araketu, o Candeal de Carlinhos Brown e da Timbalada, o Tororó dos Apaches, dentre outros espaços comunitários, são polos difusores e universalizadores da música fabricada na terra do dendê, exportadas para outros estados brasileiros e para o exterior. Esse estigma antropológico-cultural elaborado criativamente na Boa Terra serve de rolo compressor da manufatura lucrativa do autêntico Carnaval de Salvador, levando-o em forma de micaretas, carnavais fora de época e carnavais indoor organizados pelos próprios artistas. Negócio que faz da folia um elemento fabricante de turismo, relegando a cultura em plano secundário. A cultura, consequentemente, tem sua relevância posicionada nos blocos e seus respectivos músicos.

Houve, entre 1995 e 2006, a permanente articulação entre a cultura e a economia, simbolizada pelo turismo, na Bahia através da Secretaria da Cultura e Turismo (SCT), hoje desmembrada em duas pastas específicas. A concordância entre os dois caracteres distintos auxiliou no impulso dos festejos sazonais, a exemplo do Carnaval na capital e o São João e as micaretas em municípios interioranos, além da conclusão do projeto de requalificação, revitalização e valorização do Centro Histórico (Pelourinho), mola propulsora da SCT, que teve à frente Paulo Gaudenzi, vinculado amistosamente a Antônio Carlos Magalhães, protetor das feituras artísticas. Foi Gaudenzi o magistral incentivador do turismo como linha auxiliar da cultura, defendendo o Carnaval como objeto de entretenimento e de lazer dos baianos e de contingentes vindos de Norte a Sul do país e do exterior devido à hospitalidade.

A divulgação das festas de grandeza significativa na nossa terra em nível global, segundo meu ponto de vista, vela e oculta os principais problemas, impasses e gargalos que o estado sofre contemporaneamente. Massivamente, os governos sempre utilizam eventos como o Carnaval como um singelo instrumento de animação e de diversão. Como baiano de corpo, alma e coração, e defensor de uma sociedade oprimida, preconcebida, torpe e sem inocência, entender o espectro problematizador que faz do nosso povo um cúmplice da transgressão comunitária é de suma importância para o discernimento paradoxal dos entretenimentos públicos. Grandes contingentes populacionais, por suas vezes originários de bairros periféricos de Salvador, por serem cúmplices, são nocivos reféns do opróbrio humano. Para essa massa jogada a escanteio, "alegria de pobre dura pouco", ou melhor, as celebrações são desafortunadamente restritas às classes média e alta.

Durante séculos, a folia soteropolitana se transfigurou ininterruptamente, como se fosse um motor, executando operações insuperáveis, cujo combustível é, de certa forma, sua própria energia. Recordemo-nos que aqui mesmo em Salvador, apesar de ser um fato incrível, existia uma constelação de escolas de samba, já que o mais brasileiro dos ritmos nasceu aqui com a expressiva ajuda dos escravos africanos. Não vamos cogitar, absolutamente, que o samba foi criado no Rio de Janeiro, embora a penetração das escolas é tão profunda. O samba, como elemento cultural destinado à felicidade geral das pessoas, nasceu aqui mesmo na Bahia, abençoada pelo sincretismo religioso, outro elemento precioso da nossa incrementada antropologia. Baianos, em sincronia com a idealização de seu estado, devem resgatar as suas raízes fincadas na labuta de seus ancestrais.

Músicas de apologia às perversidades e às agressões, na maioria pagodes, cujas letras são temperadas com ilogismo, têm que ser canceladas por completo não somente na semana carnavalesca, mas também em períodos que a precedem e a sucedem. Em compensação, a polícia, o Tribunal de Justiça e o Ministério Público, órgãos de altíssima credibilidade, lançam campanhas de conscientização sob tendências distintas, baseadas audaciosamente num critério uno: o da pacificação. Persuadem os foliões a receberem, numa eloquência atenciosa e nem tanto prolixa, informações e serviços de utilidade pública, favorecendo o aumento de denúncias contra crimes hediondos e severos. Dentre as vinganças cometidas contra os inocentes estão o trabalho infantil, a exploração sexual de crianças e adolescentes, a delinquência juvenil e o consumo de drogas, notadamente o crack, responsável por 80% dos homicídios na Bahia.

Informações visando combater e coibir as desumanidades não acontecem apenas sazonalmente, assim como no verão e no Carnaval, mas perpetuam em qualquer época do ano. Principais artistas do cenário musical baiano tiveram suas veracidades proclamadas e declaradas recentemente em campanhas do Ministério Público estadual, revelando sua coragem e coerência no enfrentamento à violência sexual. No ano passado, os elétricos Bell Marques, vocalista do Chiclete com Banana, e Durval Lelys, vocalista do Asa de Águia, em consórcio com Margareth Menezes, uma das divas do axé, protagonizaram uma memorável cena em defesa da paz e da cordialidade. Já neste ano, cuja tônica nos bastidores era o fenômeno do Rebolation, do grupo Parangolé, quem se apoderaram dos veículos de comunicação com o intuito de convencer a população a denunciar ocorrências imorais contrárias ao público infantojuvenil foram Carlinhos Brown, Tatau e Cláudia Leitte, pregando a corrente única no combate a elas.

Nem todos os problemas conturbadores do prazer momesco são solucionados a longo prazo sob a intermediação do poder público. Criminalidade existe nos circuitos do Carnaval, pois há, em seus sentidos, trânsito fácil para todos os modelos ímpios e atrozes, incomodando a ação do povo com ares de amor, de paixão e de suor. Mesmo protegidos pela polícia, os foliões, que fazem do asfalto a plateia, estão suscetíveis a novos ataques. Reivindicamos abertamente a extinção desse absurdo cujo tamanho se agiganta entre a cerimônia de entrega simbólica da chave da cidade ao Rei Momo, na quinta-feira, e a Quarta-Feira de Cinzas, prenúncio da Quaresma. Já que vivemos numa democracia, cada qual tem a atitude autônoma de comparecer aos desfiles organizados ao ar livre. Pelo contrário, os preços do domínio de grupos elitistas em oportunidades carnavalescas são a discórdia e o preconceito.

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